quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O DIREITO DE PARTICIPAÇÃO EFETIVA DAS MINORIAS PARLAMENTARES NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO FISCALIZATÓRIA INERENTE AO PODER LEGISLATIVO


Em 1748, Montesquieu organizou a divisão entre os órgãos que exercem parcela da soberania do Estado, tratando da chamada divisão orgânica. Afirmou que o Estado se manifesta por meio do Legislativo, Executivo e Judiciário e que essa divisão, naquele determinado momento histórico, destinava-se a acabar com o absolutismo francês.

Atendo-se ao Poder Legislativo podemos dizer que este possui duas funções precípuas: a legiferante, que se manifesta através da edição de atos normativos aptos a inovar a ordem jurídica (produção de leis, em sentido amplo), e a atividade fiscalizatória, seja econômico-financeira (através dos Tribunais de Conta, por exemplo - arts. 70 e seguintes) ou político-administrativa (fundamento das comissões parlamentares de inquérito). 

A função fiscalizatória é a atividade primeira  (no sentido de tradicional) do Poder Legislativo (como ocorreu com o parlamento europeu, por exemplo). Somente com o fim do absolutismo e o surgimento do Estado de Direito é que a função legiferante ganhou espaço, tendo em vista que era a lei que impunha limites não só aos governados, mas também aos governantes.

Uma das formas de controle é a investigação pelas comissões parlamentares de inquérito. O Professor José Afonso da Silva define as CPIs como sendo "organismos constituídos em cada Câmara, composto de númeroo geralmente restrito de mebros, encarregados de estudar e examinar as proposições legislativas e apresentar pareceres". 

A Constituição de 1988, por sua vez, estabelece no art. 58 que o Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

Mais a frente, no §3º, define que "as comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente, mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a responsabilidade civil ou criminal dos infratores".

Percebe-se que três são os requisitos para a instauração da CPI: prazo certo, fato determinado, e requerimento de 1/3 dos membros da casa legislativa: senadores, em 27 membros, e deputados, "curiosamente", em 171 (essa piadinha nunca perde a graça....). 

Após essa breve introdução, questiona-se: poderia  o regimento interno de uma Assembleia Legislativa ou Câmara Municipal prever requisitos mais rígidos para a instauração da CPI? Por exemplo, prever um quórum qualificado de 2/3 para a instauração da comissão, sob o fundamento de afastar investigações pretenciosas?

Devemos lembrar que existe um sistema político-brasileiro que tutela as minorias parlamentares, garantindo a elas prerrogativas para exercerem suas competências investigativas/fiscalizatórias. Não pode a maioria moldar o sistema para frustrar o direito de investgiação garantido pela Constituição às minorias, que também representam parcela do povo brasileiro.

Ilustrando esse sentendimento, transcrevem-se precedentes do Supremo Tribunal Federal:

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3619, RELATOR MIN. EROS GRAU, DJ 20-04-07: Ação direta de inconstitucionalidade. Artigos 34, § 1º, e 170, inciso I, do Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Comissão Parlamentar de Inquérito. Criação. Deliberação do Plenário da assembléia legislativa. Requisito que não encontra respaldo no texto da Constituição do Brasil. Simetria. Observância compulsória pelos estados-membros. Violação do artigo 58, § 3º, da Constituição do 14 Brasil. A Constituição do Brasil assegura a um terço dos membros da Câmara dos Deputados e a um terço dos membros do Senado Federal a criação da comissão parlamentar de inquérito, deixando, porém ao próprio parlamento o seu destino. A garantia assegurada a um terço dos membros da Câmara ou do Senado estende-se aos membros das assembléias legislativas estaduais – garantia das minorias. O modelo federal de criação e instauração das comissões parlamentares de inquérito constitui matéria a ser compulsoriamente observada pelas casas legislativas estaduais. A garantia da instalação da CPI independe de deliberação plenária, seja da Câmara, do Senado ou da Assembléia Legislativa. Precedentes. Não há razão para a submissão do requerimento de constituição de CPI a qualquer órgão da Assembléia Legislativa. Os requisitos indispensáveis à criação das comissões parlamentares de inquérito estão dispostos, estritamente, no artigo 58 da CB/88. Pedido julgado procedente para declarar inconstitucionais o trecho ‘só será submetido à discussão e votação decorridas 24 horas de sua apresentação, e’, constante do § 1º do artigo 34, e o inciso I do artigo 170, ambos da Consolidação do Regimento Interno da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. 

MANDADO DE SEGURANÇA N. 26.441-MC, RELATOR MIN. CELSO DE MELLO, DJ 09-04-07: Nem se diga, consideradas as razões que venho de expor, que a rejeição do ato de criação da CPI, em sede recursal, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, por expressiva maioria, teria o condão de justificar a frustração do direito de investigar que a própria Constituição da República reconhece às minorias parlamentares. É que, como se sabe, deliberações parlamentares majoritárias (ou, até mesmo, unânimes) não se qualificam como fatores de legitimação de atos eventualmente inconstitucionais que delas resultem, eis que nada pode justificar, considerado o próprio significado do regime democrático, a perversão das Instituições, notadamente quando os atos do Parlamento transgridem direitos, prerrogativas e garantias assegurados pela Constituição da República. Em uma palavra: deliberações parlamentares, ainda que resultantes de votações unânimes ou majoritárias, não se revestem de autoridade suficiente para convalidar os vícios gravíssimos da inconstitucionalidade, pois, se tal fosse possível, a vontade de um dos Poderes constituído culminaria por subverter a supremacia da Constituição, vulnerando, de modo inaceitável, o próprio significado do regime democrático. Cumpre registrar, finalmente, em face das gravíssimas conseqüências que vêm afetando a regularidade do sistema de tráfego aéreo neste País, com especial atenção para o trágico acidente ocorrido em 29-9-2006, que o inquérito parlamentar pretendido pelas minorias legislativas que atuam na Câmara dos Deputados, mais do que representar prerrogativa desses grupos minoritários, constitui direito insuprimível dos cidadãos da República, de quem não pode ser subtraído o conhecimento da verdade e o pleno esclarecimento dos fatos que tanto prejudicam os superiores interesses da coletividade. É importante reconhecer, por isso mesmo, que, no regime democrático, o cidadão tem direito à informação, pois, consoante adverte Norberto Bobbio, em lição magistral (O Futuro da Democracia, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério. Todas as considerações que venho de fazer, necessárias à análise do pedido de medida cautelar, levam-me a reconhecer configurado o requisito da plausibilidade jurídica da pretensão exposta pelos ora impetrantes. Tenho para mim, por outro lado, que o requisito pertinente ao periculum in mora mostra-se evidenciado na espécie, em face, notadamente, da superveniência do acolhimento, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, do Recurso n. 14/2007, do Senhor Líder do Partidos dos Trabalhadores, de que resultou o arquivamento do pedido de criação e instauração da Comissão Parlamentar de Inquérito em causa. Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, defiro o pedido de medida liminar, para determinar, cautelarmente, até o julgamento final do presente mandado de segurança, o imediato desarquivamento do Requerimento n. 01/2007, que objetiva instituir Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a ‘investigar as causas, conseqüências e responsáveis pela crise do sistema de tráfego aéreo brasileiro, desencadeada após o acidente aéreo ocorrido no dia 29 de setembro de 2006, envolvendo um Boeing 737-800, da Gol (vôo 1907,) e um jato Legacy, da América Excel Aire, com mais de uma centena de vítimas (...)’ (fls. 17v. -grifei). A presente decisão, portanto, limita-se a paralisar os efeitos da deliberação plenária da Câmara dos Deputados proferida na Sessão Extraordinária de 21-3-2007, impedindo, desse modo, até final decisão do Supremo Tribunal Federal, que se tornem irreversíveis as conseqüências resultantes da desconstituição do Ato da Presidência dessa Casa do Congresso Nacional que havia reconhecido a criação de mencionada CPI. Mantém-se, portanto, subsistente o Ato da Presidência em questão (que entendera válida a criação da CPI em causa), cuja publicação – referida no art. 35, § 2º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – deverá aguardar o julgamento final desta ação de mandado de segurança. Assinalo, por necessário, em ordem a definir a extensão da presente medida cautelar, não se revelar constitucionalmente viável, a esta Suprema Corte, mediante simples provimento de caráter liminar, deferir ‘a instalação e o funcionamento provisórios da CPI (...)’ (fls. 11). É que não existem, em nosso sistema político-jurídico, nem a instituição provisória, nem o funcionamento precário de Comissão Parlamentar de Inquérito, cuja instalação, por isso mesmo, dependerá da eventual concessão, pelo Supremo Tribunal Federal, deste mandado de segurança. Na realidade, esta medida liminar, além de realçar a densidade jurídica do pedido formulado pelos impetrantes, obsta, até final julgamento do Supremo Tribunal Federal, que se tornem definitivos e irreversíveis os efeitos (juridicamente negativos) decorrentes da deliberação plenária da Câmara dos Deputados.

MANDADO DE SEGURANÇA N. 26.441, REL. MIN. CELSO DE MELLO, DJ 18-12-09): Existe, no sistema político-jurídico brasileiro, um verdadeiro estatuto constitucional das minorias parlamentares, cujas prerrogativas – notadamente aquelas pertinentes ao direito de investigar – devem ser preservadas pelo Poder Judiciário, a quem incumbe proclamar o alto significado que assume, para o regime democrático, a essencialidade da proteção jurisdicional a ser dispensada ao direito de oposição, analisado na perspectiva da prática republicana das instituições parlamentares. A norma inscrita no art. 58, § 3º, da Constituição da República destina-se a ensejar a participação ativa das minorias parlamentares no processo de investigação legislativa,sem que, para tanto, mostre-se necessária a concordância das agremiações que compõem a maioria parlamentar. O direito de oposição, especialmente aquele reconhecido às minorias legislativas, para que não se transforme numa prerrogativa constitucional inconseqüente, há de ser aparelhado com instrumentos de atuação que viabilizem a sua prática efetiva e concreta no âmbito de cada uma das Casas do Congresso Nacional. A maioria legislativa não pode frustrar o exercício, pelos grupos minoritários que atuam no Congresso Nacional, do direito público subjetivo que lhes é assegurado pelo art. 58, § 3º, da Constituição e que lhes confere a prerrogativa de ver efetivamente instaurada a investigação parlamentar, por período certo, sobre fato determinado. Precedentes: MS 24.847/DF, Rel. Min. Celso de Mello. A ofensa ao  direito das minorias parlamentares constitui, em essência, um desrespeito ao direito do próprio povo, que também é representado pelos grupos minoritários que atuam nas Casas do Congresso Nacional. (...) O requisito constitucional concernente à observância de 1/3 (um terço), no mínimo, para criação de determinada CPI (CF, art. 58, § 3º), refere-se à subscrição do requerimento de instauração da investigação parlamentar, que traduz exigência a ser aferida no momento em que protocolado o pedido junto à Mesa da Casa legislativa, tanto que, ‘depois de sua apresentação à Mesa’, consoante prescreve o próprio Regimento Interno da Câmara dos Deputados (art. 102, § 4º), não mais se revelará possível a retirada de qualquer assinatura. Preenchidos os requisitos constitucionais (CF, art. 58, § 3º), impõe-se a criação da Comissão Parlamentar de Inquérito, que não depende, por isso mesmo, da vontade aquiescente da maioria legislativa. Atendidas tais exigências (CF, art. 58, § 3º), cumpre, ao Presidente da Casa legislativa, adotar os procedimentos subseqüentes e necessários à efetiva instalação da CPI, não se revestindo de legitimação constitucional o ato que busca submeter, ao Plenário da Casa legislativa, quer por intermédio de formulação de Questão de Ordem, quer mediante interposição de recurso ou utilização de qualquer outro meio regimental, a criação de qualquer comissão parlamentar de inquérito. A prerrogativa institucional de investigar, deferida ao Parlamento (especialmente aos grupos minoritários que atuam no âmbito dos corpos legislativos), não pode ser comprometida pelo bloco majoritário existente no Congresso Nacional, que não dispõe de qualquer parcela de poder para deslocar, para o Plenário das Casas legislativas, a decisão final sobre a efetiva criação de determinada CPI, sob pena de frustrar e nulificar, de modo inaceitável e arbitrário, o exercício, pelo Legislativo (e pelas minorias que o integram), do poder constitucionalde fiscalizar e de investigar o comportamento dos órgãos, agentes e instituições do Estado, notadamente daqueles que se estruturam na esfera orgânica do Poder Executivo. A rejeição de ato de criação de Comissão Parlamentar de Inquérito, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, ainda que por expressiva votação majoritária, proferida em sede de recurso interposto por Líder de partido político que compõe a maioria congressual, não tem o condão de justificar a frustração do direito de investigar que a própria Constituição da República outorga às minorias que atuam nas Casas do Congresso Nacional



quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Implicações jurídico-tributárias em razão da ocupação de bem público por particular

Um bem público ocupado por particular estaria beneficiado pela imunidade tributária prevista no art. 150, VI, da Constituição (imunidade recíproca)?

A definição de bem público é trazida pelo Código Civil de 2002, preceituando que "são públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem".

Trata-se de uma repetição do conceito trazido pelo Código de 1916, esquecendo o legislador ordinário que algumas entidades da Administração Indireta passaram a ter natureza pública - a exemplo das autarquias, fundações de direito público e as associações administrativas (consórcios administrativos de direito público) - estendendo o conceito de bens públicos para além daquele trazido pelo Código. 

Apresenta-se, como alternativa, o conceito proposto por José dos Santos Carvalho Filho, que descreve bens públicos como "todos aqueles que, de qualquer natureza e a qualquer título, pertençam às pessoas jurídicas de direito público, sejam elas federativas, como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, sejam da Administração descentralizada, como as autarquias, nestas incluindo-se as fndações de direito público e as associações públicas". 

Sem dúvida, esses bens seriam agraciados pela imunidade recíproca anteriormente mencionada. No entanto, caso um bem imóvel de propriedade do Estado fosse ocupado por um particular em razão de uma concessão administrativa para prestação de serviços públicos, ainda sim estaria beneficiado pela imunidade tributária? (por exemplo, não estaria sujeito ao pagamento de IPTU)

A princípio, poderiamos pensar que por se tratar de uma imunidade "ratio personae", haveria a  ocorrência do fato gerador do IPTU, já que o tão só fato do bem ser público não afasta a hipótese de incidência. Só haveria imunidade, assim, se um ente público, proprietário ou não, tivesse a posse direta do bem. 

Estabelece o art. 32 do Código Tributário Nacional que "O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município".
 
O art. 32 do CTN não pode ser interpretado como tendo englobado, no conceito de posse, de forma indiscriminada, o ocupante de bem público, sempre em caráter precário; o mero detentor, ou o mero possuidor. Esse sim, responsável pelo tributo incidente sobre o imóvel privado de que tem a posse, na qualidade de substituto do proprietário, figura de ordinário desconhecida, ou no mínimo, alheio ao destino do bem tributado. 
 
Tratando-se de bem público, pois, não há dúvida de que a imunidade recíproca incide sobre o bem, ainda que sob a posse direta de particular prestador de serviço público. Assim, a mera delegação ao particular não é capaz de "afastar" a natureza pública do bem para fins de tributação. 

Esse também é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, conforme ementa abaixo transcrita: 
 
EMENTA: TRIBUTÁRIO. IPTU. IMÓVEIS QUE COMPÕEM O ACERVO PATRIMONIAL DO PORTO DE SANTOS, INTEGRANTES DO DOMÍNIO DA UNIÃO. Impossibilidade de tributação pela Municipalidade, independentemente de encontrarem-se tais bens ocupados pela empresa delegatária dos serviços portuários, em face da imunidade prevista no art. 150, VI, a, da Constituição Federal. Dispositivo, todavia, restrito aos impostos, não se estendendo às taxas. Recurso parcialmente provido (STF, 1ª Turma, RE 253.394-SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 11-04-2003).
 
(Sem revisão)